Século 21 - Igreja Católica dá guinada e entra numa nova era
Quebra de tabus mostra que o mundo mergulha de fato numa fase de grandes transformações
Jorge Mario Bergoglio, assim que assumiu o papado, em março de 2013, deu sinais de que mudanças poderiam surgir ao recusar os luxuosos cômodos do Palácio Apostólico no Vaticano e escolher a Casa de Santa Marta, para ficar “junto com os outros membros do clero”. É lá que hoje o papa costuma tomar café da manhã, além de celebrar missa para os funcionários locais. Dispensou também o carro oficial e os seguranças. No início de dezembro, eram crescentes os rumores de que ele costuma "escapar" do Vaticano durante a noite, vestido como padre, para encontrar pessoas necessitadas de Roma. Autoridades do Vaticano negaram.
O novo chefe supremo da igreja católica assumiu depois da renúncia de Bento XVI, a primeira dos últimos 600 anos. Entre as atitudes que soam como início de mudanças profundas, Francisco formou uma comissão para reformar a cúria, outra para acompanhar as operações do Instituto para as Obras de Religião (IOR) e declarou que os homossexuais não deveriam ser julgados ou marginalizados. "Se alguém é gay e busca o Senhor de boa fé, quem sou eu para julgar?", comentou. Medidas e palavras impensáveis para uma Igreja Católica de séculos atrás.
Entre as publicações que lhe renderam o título de personalidade do ano está a revista "The Advocate", a mais tradicional da comunidade gay norte-americana. Quando foi eleito personalidade do ano pela Time, o secretário de Estado do Vaticano, padre Federico Lombardi, afirmou que o título "é um sinal positivo" que demonstra "entendimento" das mensagens religiosas e morais do papa.
Historiadores e sociólogos especializados no estudo da igreja ajudam a esclarecer um pouco as mudanças que essa instituição vem passando e o que elas significam para a sociedade, e também para a própria instituição. Eles ressaltam a retomada de uma maior força, até com ateístas e agnósticos. Até pouco tempo taxada de atrasada e/ou engessada, a igreja agora percebe um crescimento rápido de fiéis e simpatizantes, ao falar de questões que antes não encontravam voz na entidade. O Vaticano tem ficado lotado de pessoas nos últimos nove meses, motivadas pelo discurso inovador do papa Francisco, acredita-se.
Mario Jorge da Motta Bastos, doutor em História Social pela USP e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica sobre a presença da Igreja Católica na Idade Média. Vertente da historiografia francesa, ligada a Alain Guerreau, aponta que a supremacia da Igreja naquele período seria decorrência de vários níveis: controle do espaço - pela multiplicação dos templos, criação das paróquias e inserção em comunidades; controle do tempo - com os sinos marcando as principais jornadas diárias; controle da cultura erudita - com atuação nas universidades; controle dos principais rituais cotidianos e ritos de passagem - como o casamento; e sacralização da estrutura social.
"Esta instituição tem séculos de existência, ao longo dos quais instituiu uma base material incomensurável, articulou-se com e reproduziu-se no interior de sistemas e estruturas de poder diversas. Se, na Idade Média, foi enorme o seu papel na sacralização do sistema feudal, também são clássicas as análises que articulam o cristianismo - e não só a sua vertente protestante - à implantação do sistema capitalista. De qualquer forma, a hegemonia gozada em toda a Idade Média sofreu consideráveis e sucessíveis abalos relacionados, é claro, com a Reforma protestante e a consecutiva proliferação de vertentes religiosas. De minha parte, contudo, creio que um abalo importante foi decorrente do processo de 'perda de potência sagrada', de laicização das sociedades contemporâneas, que pôs em xeque a ascendência da religião como instrumento incontestável e socialmente generalizado de compreensão do mundo", comentou.
Para Mario Jorge, a escolha de Bergoglio como papa foi "bastante consequente", devido à crise institucional e de crença que afetava a igreja. "A guinada à direita do episcopado de João Paulo II teve como efeito colateral o recuo do catolicismo nas áreas pobres dos países periféricos. Bento XVI foi uma aposta na sequência daquela orientação, que se mostrou equivocada e redundou na sua renúncia. Esse quadro geral ajuda a entender a escolha de um latino-americano - frente há muito mais importante, no que se refere à quantidade de crentes, de sustentação da Igreja do que a própria Europa".
Maurício Vieira Martins, professor do Departamento de Sociologia da UFF, destacou que existe hoje um debate entre os especialistas tentando explicar os diferentes motivos que levaram o papa Francisco a assumir posições próximas ao que, num outro momento da Igreja Católica, ficou conhecido como uma opção preferencial pelos pobres. "A rigor, ainda não existe uma resposta segura para isso, até porque o início do pontificado de Bergoglio é muito recente."
O professor considera errôneo afirmar um suposto caráter marxista do papa, por várias razões. Suas declarações contra uma "economia de exclusão e desigualdade" representam o mínimo que se espera de um homem comprometido com o bem estar da população mais pobre. "Em outras palavras, podemos dizer que não é o papa que é marxista, mas sim que ele está lidando com adversários tão conservadores que se sentem ofendidos mesmo com iniciativas moderadas de redistribuição da riqueza social", ressaltou.
Ivo Lesbaupin, professor na UFRJ, graduado em Filosofia e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, da França, acredita por sua vez, que a igreja está, sim, totalmente diferente. Até a metade do século 20, ressalta, ela tinha papel de hegemonia cultural no ocidente inteiro e parte do oriente médio, e extremo oriente. "Ainda tem um poder da igreja, de um modo geral, em relação ao curso da nação, aparelho jurídico, a certa datas comemorativas".
No início da década de 1960, explica Lesbaupin, aconteceu um processo de reforma na igreja que abre as portas para o diálogo com as ciências, com as demais igrejas cristãs, com judeus e muçulmanos, minimização do discurso monárquico por excelência. "Isso flexibilizou um pouco mais a igreja. Se ela não tinha ainda a coragem de dialogar com radicalidade sobre assuntos como aborto, homossexuais, pelo menos não tínhamos prática persecutória".
"Na metade da década de 1980, no entanto, a igreja volta a algumas práticas, houve moralização do discurso da igreja, mas aí o discurso já não era mais tão audível", aponta. "Até que chega Francisco com ideia de diálogo da igreja, do ecumenismo, com um novo assento não mais na moralidade, mas na revolução afetiva, no serviço ao outro, que ganha alguma voz ainda hoje, neste mundo de esfacelamento quase geral de alguns valores que até o século 20 eram estáveis."
Questionado sobre se o discurso do papa estaria em sintonia com o novo momento da Europa e Estados Unidos, o professor responde que sim. Neste sentido, então, o papa tem dado lugar de proeminência, com discursos sobre a desumanização do curso econômico do mundo. "Ele não veio com uma resposta antiga, ele veio dizer que temos que dialogar para dar conta de todo este absurdo."
Lesbaupin ressalta que a igreja, em seu início, era altamente pobre, ligada a populações excluídas do império romano, até que os romanos a assumiram e formou-se a aliança entre poder civil e eclesiástico. No entanto, ele acredita que há uma série de limitações das ações do papa, para que se possa adotar mudanças grandes.
"A longo prazo, a gente não sabe bem o que vai acontecer. Mas me parece que, se essa postura durar por mais 10 anos, vamos começar a ver certas mudanças", disse Lesbaupin.
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