No Vaticano, todas as manhãs, o grande despertar começa às 7h, quando o
papa Francisco se posta diante de 80 ou 90 funcionários na moderna e
austera capela da casa de hóspedes de Santa Marta e reza a primeira
missa do dia. Ele fala italiano com uma suave entonação de espanhol e
reza a missa sem seguir um roteiro manuscrito e sem fazer uso do latim
--e olha diretamente para os rostos das pessoas que formam a
congregação. Em seguida, Francisco desaparece pela sacristia para se
juntar aos fiéis --ele entrelaça os dedos, inclina a cabeça e ora.
Os garis do Vaticano foram os primeiros funcionários que o novo papa
convidou para participar dessas missas matinais, seguidos por
seguranças, jardineiros, freiras e até mesmo os consultores do Banco do
Vaticano. Muitos dos cerca de 4.000 funcionários do Vaticano comparecem à
missa --não porque eles sejam obrigados, mas porque eles adoram
Francisco.
"Ele não tem nenhum temor", diz outro morador da Casa de Santa Marta,
localizada na extremidade sul da Cidade do Vaticano e que hoje também é a
residência do papa Francisco. Ele profere "sermões simples (com)
palavras calorosas. Ele conseguiu superar a divisão que existe entre os
leigos e o clero".
Na hora do almoço, Jorge Mario Bergoglio vai até a cafeteria e aguarda
que seu café seja preparado pela máquina. "No início, ele se sentava
sozinho, e nós ficávamos olhando para ele", diz o colega residente da
Casa de Santa Marta. Mas, agora, as pessoas se sentam com ele.
Recentemente, o cardeal Luis Antonio Tagle, um dos mais jovens membros
do conclave, foi até o papa e perguntou: "Santo Padre, posso me sentar?"
"É claro, santo filho", respondeu o papa.
Francisco é um pescador de homens, da mesma maneira que o papa João
Paulo 2º o foi. Quase quatro meses após sua eleição, em 13 de março
deste ano, e depois de seu primeiro e quase tímido "buona sera" ("boa
noite") proferido a partir do balcão da Basílica de São Pedro, Francisco
elevou seu papado às alturas celestiais. Ele facilita para as pessoas a
tarefa de amá-lo. Elas gostam de sua abordagem diferente e incomum e de
suas palavras simples. "Orem por mim", ele lhes diz, ou "bon appetit"
(bom apetite). As pessoas gostam do fato de que ele ignora o protocolo,
de que ele lavou os pés de uma mulher muçulmana durante a Páscoa, de que
ele dirige um Ford Focus ou de que ele pega ônibus e de que ele
preferiu viver na casa de hóspedes do Vaticano em vez de morar no
Palácio Apostólico.
O papa dos gestos
Bergoglio é o primeiro papa jesuíta e, desde a Idade Média, é também o
primeiro não-europeu a assumir o papado. Ele nasceu na Argentina, no
"fim do mundo", como disse, filho de pais imigrantes italianos. É a
partir dessa perspectiva que Francisco ainda olha para o Velho Mundo.
Esse ponto de vista lhe permite demonizar a crise financeira, a pobreza e
a instabilidade que atualmente estão assolando os países do sul da
Europa. Esse papa vive no presente e é mais político do que seu
antecessor. Mas também ficou claro que ele se manterá em silêncio em
relação a certas questões --como a ordenação de mulheres, o celibato, o
aborto e o casamento gay-- e que manterá a abordagem de seu predecessor
alemão diante delas.
Bento 16 foi o papa das palavras, um papa professoral cujas missas
pareciam palestras. Francisco é o oposto. Em vez de argumentar, ele
atrai a atenção das pessoas. Ele se faz entender melhor por meio de seus
gestos e de sua aparência. A visita de Francisco à ilha mediterrânea de
Lampedusa foi um gesto de compaixão que deu uma amostra do tipo de
abordagem adotada por ele: ir ao povo, misturar-se às pessoas e fazer
perguntas incômodas.
Em seus sermões, o papa Francisco muitas vezes critica a "igreja
sofisticada", que ele acusa de ficar girando em torno de si mesma e de
lutar por poder e riqueza. Por outro lado, Francisco quer "uma igreja
pobre e uma igreja para os pobres". Ele quer que a igreja se aventure
pelas periferias, pelas margens da sociedade. Esse é o conceito da
"teologia do povo" que influenciou Francisco. Na década de 1970, os
partidários dessa teologia deixaram suas casas paroquiais e se mudaram
para as favelas.
Praticamente não existe nenhum lugar na Europa que seja mais periférico
do que Lampedusa, onde começa a África e onde a Europa tenta defender
sua fortaleza de prosperidade. Durante sua visita à ilha, o papa pregou
em um altar feito com a madeira de barcos encalhados, dentro dos quais
morreram refugiados que tentavam chegar à Europa. Lá, Francisco se
enfureceu contra a "globalização da indiferença". Ele perguntou quem era
o culpado pelo sofrimento dos refugiados e por que tantas pessoas
tinham se esquecido da empatia e perdido a capacidade de chorar. Foi um
início promissor para seu papado.
Mas, apesar das aparências, Francisco ainda não é o "papa pop star" que
muitos acreditavam que ele seria no início de seu papado. Ele é um
homem de ação --e trabalha num ritmo surpreendente. "Ele age como alguém
que sabe que não é eterno. Afinal de contas, ele tem apenas metade de
um pulmão e balança como um navio quando caminha. E ele vai fazer 77
anos em dezembro", disse um funcionário da cúria que preferiu se manter
anônimo.
"Ainda se aquecendo"
O primeiro verão de Francisco como papa será de muito trabalho, e ele
não tem planos de fazer uma pausa para descansar na residência papal de
verão, em Castel Gandolfo. O secretário de Estado papal poderá ser
nomeado em breve e ele se tornará uma figura-chave para levar a cabo a
tão demandada reforma da cúria --alguém para, finalmente, acabar com o
nepotismo, com o desperdício de dinheiro e com a velha rede de
influência dos antigos membros do Vaticano. A cúria está dividida entre
aqueles que estão preocupados com o fato de o papa estar se esforçando
demais e aqueles que têm medo da nova ordem. "O papa ainda está se
aquecendo", diz a fonte da cúria. "Nós estamos agachados nas
trincheiras, e várias pessoas estão tremendo de medo".
Um dos maiores projetos de reforma do novo papa é o que envolve
Instituto para as Obras Religiosas (IOR), mais conhecido como Banco do
Vaticano. Em uma recente manhã de julho, algumas freiras encontravam-se
no saguão do banco, que é coberto por uma cúpula. Havia pouca atividade
no local. No entanto, algo semelhante a uma perestroika parecia estar
ocorrendo ali, pois, de repente, recebemos autorização para entrar nessa
fortaleza enorme e, em geral, inacessível, situada ao lado da
Secretaria de Estado do Vaticano. Também fomos autorizados a apertar a
mão do presidente do banco, enquanto assessores vestidos com ternos
risca de giz nos guiavam por seus corredores. Será que esse é o "efeito
Francisco" do qual todo mundo está falando ou apenas uma sessão
apressada de gerenciamento de crise de relações públicas?
No final do corredor fica o centro nervoso secreto do banco, que também
tivemos autorização para visitar brevemente. O local, equipado com uma
mesa, cabos e muitos monitores, é onde um professor de Harvard e uma
dezena de consultores em gestão estavam sentados com as mangas
arregaçadas. O trabalho deles é auditar as contas do banco, revisando
cada transação que tenha movimentado mais de € 10 mil e peneirando todos
os novos clientes. Um deles já foi capturado no final de junho tentando
trazer € 20 milhões da Suíça para Roma em um jato particular: o
monsenhor Nunzio Scarano, contador-chefe da carteira de propriedade do
Vaticano, que tinha a intenção de lavar o dinheiro por meio do IOR. É
claro que outros como ele seguirão pelo mesmo caminho agora que o
Vaticano pretende passar uma esponja no passado sujo do banco de Deus.
Francisco está prestando especial atenção ao IOR. Bento 16 fez a mesma
coisa ao nomear Ernst von Freyberg como diretor do banco em fevereiro
passado. Mas já era tarde demais, e Freyberg demonstrou pouco interesse
pelos detalhes.
Primeiro erro?
Francisco, por sua vez, emitiu no final de junho passado um decreto
escrito à mão que determinava a formação de uma comissão de
investigação. Dois dias depois, o contador-chefe do Banco do Vaticano
foi preso e, no dia 2 de julho, os dois diretores gerais da instituição
renunciaram repentinamente. Na sexta-feira passada, o papa Francisco
nomeou uma comissão especial para aconselhá-lo diretamente sobre
questões econômicas e gerar mais transparência no Vaticano. O papa
Francisco também nomeou um prelado que terá acesso a todas as reuniões
do Banco do Vaticano e se reportará diretamente a ele.
A nomeação desse prelado, no entanto, poderá se transformar no primeiro
erro do papa Francisco. Isso porque o papa escolheu para a função o
monsenhor Battista Ricca, ex-administrador da casa de hóspedes do
Vaticano. Segundo publicou a revista L'Espresso na semana passada, Ricca
foi transferido para a casa de hóspedes em 2001 por motivos
disciplinares, pois ele supostamente mantinha um relacionamento
homossexual e vivia com seu companheiro na nunciatura de Montevidéu, no
Uruguai. Ricca também foi espancado em um bar gay. Será que, afinal de
contas, o "lobby gay" --cujos membros asseguram posições uns para os
outros-- realmente existe dentro do Vaticano? Será que a cúria
deliberadamente escondeu o passado de Ricca do papa? Essas questões
terão que permanecer sem resposta por enquanto, mas a nomeação de Ricca
pode retornar para assombrar o papa no futuro.
Enquanto isso, Alessia Giuliani, 42, fumante compulsiva e moradora de
Roma, aguarda na praça de São Pedro. Ela está em pé ao lado do obelisco,
segurando sua câmera de paparazzi com sua teleobjetiva. É quarta-feira
de manhã, e a audiência pública semanal está prestes a começar. Centenas
de milhares de pessoas inundam a praça --um mar de smartphones e
sombrinhas para proteger as pessoas do Sol.
Giuliani começou a tirar fotos de grupos de peregrinos há 15 anos, até
que, por fim, conseguiu se tornar a primeira mulher a integrar o ilustre
círculo dos fotógrafos papais. Agora que Francisco assumiu o papado,
ela precisa usar flashes mais fortes e uma abertura maior, pois ele tem a
pele mais escura do que o seu antecessor. Embora Giuliani venda mais
fotos agora, ela quase não tem mais vida privada, pois Francisco
frequentemente faz aparições espontâneas, de modo que ela tem que correr
atrás do papa toda hora.
Ela olha por sua lente e vê Francisco no papamóvel, fazendo sinal de
positivo com o polegar. O chefe de segurança do papa leva algumas
crianças até o veículo, e Francisco distribui beijos, ganha de presente
uma camisa do seu amado clube de futebol, o Atlético San Lorenzo de
Almagro, e abraça uma menina com síndrome de Down. E ele se mantém nesse
ritmo, muitas vezes durante uma hora, até que a missa comece. "Che
spettacolo" --"que espetáculo"-- diz uma mulher romana, balançando a
cabeça e se afastando.
A fotógrafa abaixa sua câmera e diz que o cenário é muito indistinto
para fazer novas imagens. Ela se queixa de ainda não ter sido capaz de
capturar uma imagem que realmente descreva o novo papa. Segundo
Giuliani, quanto mais tempo ela observa o papa, mais ela teme que, em
breve, existam imagens demais dele --que seus gestos possam vir a perder
seu significado e que as suas mensagens se tornem triviais.
Como se prega na América Latina
O arcebispo dom Gerhard Ludwig Müller, 65, pode ouvir os aplausos da
missa pública semanal em seu apartamento, localizado em Santa Anna Gate.
Ele prefere chamar o evento de sessão de aconselhamento do que de
espetáculo, e observa que essa é a maneira como se prega na América
Latina.
O arcebispo assumiu o antigo apartamento de Joseph Ratzinger, que viveu
no local durante 23 anos, assim como sua antiga função como prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, o que o torna o supremo protetor da
fé dentro da igreja. Filho de um supervisor de uma fábrica da Opel, em
Mainz, na Alemanha, às vezes Müller recebe suas visitas particulares
vestindo um agasalho esportivo. Ele está de bom humor e está comemorando
seu primeiro aniversário no cargo de prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé. E, aparentemente, o novo papa pretende mantê-lo no
cargo.
A situação lamentável envolvendo a Sociedade de São Pio 10 (SSPX)
também parece ter sido deixada de lado. Um membro da ordem, Richard
Williamson, havia negado a existência do Holocausto e, mesmo assim,
Bento 16 reabilitou o bispo ultraconservador. Agora, o diálogo do
Vaticano com a SSPX parece ter sido suspenso até nova ordem.
Outra mudança observada durante o papado de Francisco é que a igreja
estará menos inclinada a lutar contra os rebeldes em suas fileiras.
De acordo com Müller, o fato de Francisco ter escolhido o Brasil como
destino para sua primeira grande viagem --durante a Jornada Mundial da
Juventude, nesta semana, no Rio de Janeiro-- visa a demonstrar que a
igreja é formada por pessoas diferentes "daquele bando dissoluto de
Roma, com sua pompa e arrogância". Ele espera que os sermões feitos pelo
papa no Rio deem um impulso semelhante àquele emanado em sua visita a
Lampedusa. Francisco pretende falar claramente no Rio, dirigindo seus
comentários aos pobres das favelas, aos jovens infratores e aos viciados
em drogas.
Descontroladamente entusiasmado
Apesar de Francisco parecer bastante acessível, é difícil encontrá-lo
pessoalmente. Em meados de maio, quando a chanceler alemã tinha acabado
de chegar para uma audiência privada com o sumo pontífice, um seleto
grupo de alemães foi autorizado a se encontrar com o papa depois. Nós
caminhamos durante vários minutos pelos corredores do Palácio
Apostólico, cumprimentamos a Guarda Suíça e fomos convidados a esperar
nas antecâmaras, cujas paredes são forradas com um tecido adamascado.
Nós podíamos ouvir as risadinhas da chanceler Angela Merkel dentro da
sala do papa. "Da próxima vez, nós combinamos que vamos comer uma pizza
na praça", disse ela em alemão ao deixar a sala.
Francisco, mais baixo do que aparenta pelas fotos e exausto depois de
uma conversa de 47 minutos sobre a economia de mercado e as
regulamentações financeiras, ficou dentro da sala. O aperto de mão do
papa é firme, e seus olhos pareciam curiosos. Não havia nada de pomposo
nele. E ele não estava usando o anel de ouro dos pescadores, mas sim um
relógio de plástico.
O que se diz ao papa? Talvez que Roma parece um lugar novo desde a sua
eleição, como uma cidade que despertou de um longo sono? Francisco, sem
dúvida, já ouviu isso antes. Mas, mesmo assim, ele riu com vontade e
parecia genuinamente contente e verdadeiro, como uma pessoa que está
loucamente entusiasmada com seu novo trabalho.
Tradutor: Cláudia Gonçalves